Tendemos a ler a Bíblia como um único livro, bem como
pensamos que ela nasceu num mundo cheio de livros, textos e escritores. Porém,
a Bíblia foi “escrita” antes que houvesse livros!
A Bíblia é Palavra de Deus?
Antes de qualquer coisa, se Deus não quisesse revelar-se,
jamais saberíamos algo dEle. Por isso, antes de entendermos a Bíblia precisamos
saber o que significa revelação. “Em virtude desta Revelação,
Deus invisível, no imenso amor, fala aos homens como a amigos e conversa com
eles, para os convidar e admitir a participarem da sua comunhão.” (DV,
2) Deus não revela simplesmente ideias, mas Ele mesmo se revela. Ou seja, antes
da Bíblia há a Revelação de Deus.
O que é Revelação?
Como Deus mesmo se revela, a revelação é a manifestação de
Deus em nossa história. Porém, a revelação não é um objeto que se pode pegar e
medir. Ela é um dom de Deus, é obra de seu inesgotável amor. “Revelação
executa-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de
tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação,
manifestam-se e corroboram a doutrina e as realidades significadas pelas
palavras, enquanto as palavras declaram as obras e esclarecem o mistério nelas
contido. E a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da
salvação dos homens, manifestasse-nos por meio desta Revelação no Cristo, que
é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a Revelação.” (DV,
2) Ou seja, a Revelação aconteceu durante a história dasalvação até
atingir sua plenitude, em Jesus.
Portanto, após Jesus não existem novas “revelações”! O Verbo
encarnado (assume nossa humanidade por completo), que assume nossa linguagem
humana, é o ápice (“o máximo”) do amor divino ao ser humano. Aquele que não
pode ser dito, fez-se Palavra! Nesse sentido, esta Revelação é definitiva e
jamais passará, “e não se há de esperar nenhuma outra Revelação pública
antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo.” (DV,
4) Por isso, quando outras pessoas ou denominações religiosas dizem ter uma
nova “revelação”, no fundo, estão mentindo e enganando, já que a plenitude da Revelação
consumou-se com Jesus.
Qual a ligação da Bíblia com a Revelação?
Se a Revelação, enquanto tal, teve sua plenitude em Jesus
Cristo, como sabemos sobre ela?! Cristo, Revelação do Pai, confiou a Revelação
aos Apóstolos, que pregaram, viveram e, por inspiração do Espírito Santo, colocaram
por escrito a mensagem salvífica. Para que essa mensagem de salvação
continuasse viva na Igreja, os Apóstolos deixaram os bispos como seus
sucessores e guardiões da verdade, contida na Tradição e na Sagrada Escritura.
“Portanto, esta Sagrada Tradição, e a Sagrada Escritura dos dois
Testamentos, são como que um espelho no qual a Igreja, peregrina na terra,
contempla a Deus, de quem tudo recebe, até chegar a vê-lo face a face tal qual
Ele é.” (DV, 7)
A Bíblia é Palavra de Deus?
É preciso recordar que Jesus Cristo é A Palavra de
Deus, o Verbo encarnado. Assim sendo, a Bíblia transmite a
Revelação Divina. Mas afinal aceitar somente a Escritura basta? Quem somente
aceita a Bíblia como única fonte da Revelação está faltando com a verdade. A
Sagrada Escritura não nasceu sozinha, pronta! A Bíblia está intimamente ligada
a Sagrada Tradição.
“Derivando ambas da mesma fonte divina, formam como que uma
coisa só e tendem ao mesmo fim. Com efeito, a Sagrada Escritura é Palavra de
Deus enquanto escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por
sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de
Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que
os sucessores destes, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham
e a difundam fielmente na sua pregação; por consequência, não é só da Sagrada
Escritura que a Igreja tira a sua certeza a respeito de todas as coisas
reveladas. Ambas devem, portanto, ser recebidas e veneradas com igual afeto e
piedade.” (DV, 9)
Portanto, “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura
constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja...”
(DV, 10)
Foi Deus quem escreveu a Bíblia?
“As coisas reveladas por Deus, que se encontram e
manifestam na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo.”
(DV, 11) Ou seja, tanto o Antigo Testamento, como o Novo Testamento têm
a Deus por autor. “Todavia, para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu
homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para
que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros
autores, tudo e só aquilo que ele quisesse.” (DV, 11)
Como deve ser interpretada a Sagrada Escritura?
Como Deus, na Bíblia, falou por meio de pessoas humanas e à
maneira humana, todo leitor, para saber o que Ele quis comunicar, deve
investigar com atenção o que os autores inspirados (‘hagiógrafos’)
realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar por meio das palavras
deles. Para isso é preciso aprofundar a compreensão da Sagrada Escritura através
de estudos bíblicos.
A Bíblia não é um conjunto de textos isolados, separados que
podem ser analisados separados do todo da Tradição viva da Igreja. É importante
esclarecer que há dois tipos de “tradição”: a cultural – que são
as leis, regras, os padrões sociais, etc.; e a Tradição da Igreja – que é um
“rio vivo” que nos liga às origens, a Jesus Cristo, seu fundamento. Logo, Tradição
não é transmissão de palavras mortas! O que é o “objeto” Bíblia? É um
“conjunto”, uma “coleção” de pergaminhos.
Qual o significado da palavra “Bíblia”?
Em hebraico, é usada a palavra סֵפֶר (“sefer”) para significar “livros”,
rolos, escritos, inscrições. Em grego, usa-se o termo βιβλίον (“Biblion”), cujo qual significa “livros”, “pergaminhos”.
Por isso, a Bíblia é um “conjunto de textos”. Não é um
produto de um autor individual! Convém ressaltar que mais do que alguém que
redigiu (“escreveu”), há uma tradição oral da comunidade. Por isso, a Bíblia
não é obra de um escritor fechado em seu escritório climatizado; mas é obra
transmitida por uma comunidade. Uma pessoa vive na comunidade; logo, os textos
bíblicos são, em primeiro lugar, uma tradição coletiva.
A Bíblia tem “autor”?
Por que estamos tão interessados em saber quem escreveu
a Bíblia? Isto é comum para nossa cultura ocidental que se acostumou a ver
textos escritos. A sociedade israelita não era uma predominantemente escrita,
mas sim uma cultura oral. Haviam escribas, na grande maioria, somente na
Mesopotâmia. Estes eram apenas pessoas que transcreviam os relatos literários e
não os “autores”, eram burocratas. No idioma hebraico clássico sequer possui
uma palavra que signifique “autor”. O “escriba”, סֹפֵר
(“sofer”), termo mais aproximado, era o transmissor da
tradição e não o autor. As tradições e as histórias, na cultura judaica, eram transmitidas oralmente de uma
geração à outra. A autoridade era a comunidade e não um autor.
“Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e
interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que levou à sua redação, ao
investigarmos o sentido exato dos textos sagrados, devemos atender com
diligência não menor ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, tendo em
conta a Tradição viva de toda a Igreja e analogia da fé.” (DV, 12)
Porém, o Helenismo (difusão da língua, da cultura e valores
gregos) trouxe consigo a expressão autor. A ação de “dar autores” aos
textos é algo posterior. Isso fica claro, por exemplo, no livro do
Deuteronômio, que se apresenta como um relato em terceira pessoa e não como
algo que Moisés escreveu: “Eis as palavras que Moisés dirigiu a todo Israel”
(Dt 1,1).
Quando houve a transição do Oral para o Escrito?
Primeiramente, é importante salientar que no mundo greco-romano
houve resistência natural aos livros e à escrita. As pessoas consideravam a
“voz viva” mais eficiente que os escritos. Paulo, por exemplo, aos Coríntios,
dirá: “Vós sois uma carta do Cristo confiada ao nosso ministério, escrita
não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em
tábuas de carne, nos vossos corações”. (2 Cor 3,3) Nos primeiros
séculos da Era cristã, os rabinos também diziam que a tradição oral era a
última autoridade, acima da Torá escrita (“conjunto de texto bíblicos”
do Antigo Testamento, menos os escritos em grego).
Quando a Bíblia foi redigida?
A tradição oral é antiguíssima! Já a redação,
em grande parte, do Antigo Testamento, aconteceu entre os séculos VIII e VI
a.C. (“antes de Cristo”), ou seja, entre os dias dos profetas Isaías e Jeremias.
A redação aconteceu com o movimento de “urbanização” de Jerusalém, com o
crescimento da burocracia governamental e no desenvolvimento da economia
global. Portanto, a “Bíblia Judaica” (formada por três conjuntos: Toráh –
“ensino” –, Nebiim – Profetas – e Ketubim – escritos), chamada de
Tanak, possui fragmentos datados no século X a.C. e a maior parte no
final do século VIII a.C. e no início do século VI a.C. Os primeiros escritos
cristãos foram as cartas. Assim, nos anos 50 do século I, Paulo elaborou
os mais antigos documentos cristãos existentes: 1 Tessalonicenses, Gálatas,
Filipenses, Filêmon, 1 e 2 Coríntios e Romanos. As demais cartas/epístolas foram
surgindo aos poucos, em meados dos anos 60. No Novo Testamento, os Evangelhos
têm o primeiro lugar por serem o principal testemunho da vida e
doutrina do Verbo encarnado, Jesus Cristo. Os evangelhos são de origem
apostólica: Os Apóstolos pregaram e, depois, eles e outros discípulos
apostólicos transmitiram por escrito, sob inspiração do Espírito Santo,
o testemunho e a vida de Jesus. Neste sentido, o Evangelho segundo Marcos, o
mais antigo, foi redigido na década de 60 ou logo depois dos anos 70. Os
evangelhos segundo Mateus e Lucas foram redigidos entre 10 e 20 anos depois de
Marcos. Por fim, o evangelho segundo João foi composto entre os anos 90 e 100.
Nenhum
dos Evangelhos menciona um nome de um autor. A atribuição dos nomes aconteceu
no final do século II. O fato dos “livros” estarem numa ordem isto não
significa que os primeiros sejam os mais antigos. Por exemplo, o Apocalipse é
um gênero literário que representa a comunidade cristã após os anos 70. Enfim,
as composições cristãs aconteceram, provavelmente, entre os anos 50 e 150.
Pe. Renan Dall'Agnol
Paróquia Sagrado Coração de Jesus
Material de Formação Catequética