quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Bíblia, um livro?

    Tendemos a ler a Bíblia como um único livro, bem como pensamos que ela nasceu num mundo cheio de livros, textos e escritores. Porém, a Bíblia foi “escrita” antes que houvesse livros!

 

 A Bíblia é Palavra de Deus?

     Antes de qualquer coisa, se Deus não quisesse revelar-se, jamais saberíamos algo dEle. Por isso, antes de entendermos a Bíblia precisamos saber o que significa revelação. “Em virtude desta Revelação, Deus invisível, no imenso amor, fala aos homens como a amigos e conversa com eles, para os convidar e admitir a participarem da sua comunhão.” (DV, 2) Deus não revela simplesmente ideias, mas Ele mesmo se revela. Ou seja, antes da Bíblia há a Revelação de Deus.


O que é Revelação?

     Como Deus mesmo se revela, a revelação é a manifestação de Deus em nossa história. Porém, a revelação não é um objeto que se pode pegar e medir. Ela é um dom de Deus, é obra de seu inesgotável amor. “Revelação executa-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam-se e corroboram a doutrina e as realidades significadas pelas palavras, enquanto as palavras declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. E a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifestasse-nos por meio desta Revelação no Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a Revelação.” (DV, 2) Ou seja, a Revelação aconteceu durante a história dasalvação até atingir sua plenitude, em Jesus.
      Portanto, após Jesus não existem novas “revelações”! O Verbo encarnado (assume nossa humanidade por completo), que assume nossa linguagem humana, é o ápice (“o máximo”) do amor divino ao ser humano. Aquele que não pode ser dito, fez-se Palavra! Nesse sentido, esta Revelação é definitiva e jamais passará, “e não se há de esperar nenhuma outra Revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo.” (DV, 4) Por isso, quando outras pessoas ou denominações religiosas dizem ter uma nova “revelação”, no fundo, estão mentindo e enganando, já que a plenitude da Revelação consumou-se com Jesus.

 

Qual a ligação da Bíblia com a Revelação?

     Se a Revelação, enquanto tal, teve sua plenitude em Jesus Cristo, como sabemos sobre ela?! Cristo, Revelação do Pai, confiou a Revelação aos Apóstolos, que pregaram, viveram e, por inspiração do Espírito Santo, colocaram por escrito a mensagem salvífica. Para que essa mensagem de salvação continuasse viva na Igreja, os Apóstolos deixaram os bispos como seus sucessores e guardiões da verdade, contida na Tradição e na Sagrada Escritura. “Portanto, esta Sagrada Tradição, e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos, são como que um espelho no qual a Igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe, até chegar a vê-lo face a face tal qual Ele é.” (DV, 7)  


A Bíblia é Palavra de Deus?

    É preciso recordar que Jesus Cristo é A Palavra de Deus, o Verbo encarnado. Assim sendo, a Bíblia transmite a Revelação Divina. Mas afinal aceitar somente a Escritura basta? Quem somente aceita a Bíblia como única fonte da Revelação está faltando com a verdade. A Sagrada Escritura não nasceu sozinha, pronta! A Bíblia está intimamente ligada a Sagrada Tradição.
     “Derivando ambas da mesma fonte divina, formam como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. Com efeito, a Sagrada Escritura é Palavra de Deus enquanto escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que os sucessores destes, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; por consequência, não é só da Sagrada Escritura que a Igreja tira a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Ambas devem, portanto, ser recebidas e veneradas com igual afeto e piedade.” (DV, 9)
    Portanto, “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja...” (DV, 10)
   

Foi Deus quem escreveu a Bíblia?

   “As coisas reveladas por Deus, que se encontram e manifestam na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo.” (DV, 11) Ou seja, tanto o Antigo Testamento, como o Novo Testamento têm a Deus por autor. “Todavia, para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que ele quisesse.” (DV, 11)
 

 

Como deve ser interpretada a Sagrada Escritura?

    Como Deus, na Bíblia, falou por meio de pessoas humanas e à maneira humana, todo leitor, para saber o que Ele quis comunicar, deve investigar com atenção o que os autores inspirados (‘hagiógrafos’) realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar por meio das palavras deles. Para isso é preciso aprofundar a compreensão da Sagrada Escritura através de estudos bíblicos.
     A Bíblia não é um conjunto de textos isolados, separados que podem ser analisados separados do todo da Tradição viva da Igreja. É importante esclarecer que há dois tipos de “tradição”: a cultural – que são as leis, regras, os padrões sociais, etc.; e a Tradição da Igreja – que é um “rio vivo” que nos liga às origens, a Jesus Cristo, seu fundamento. Logo, Tradição não é transmissão de palavras mortas! O que é o “objeto” Bíblia? É um “conjunto”, uma “coleção” de pergaminhos.
  

 

Qual o significado da palavra “Bíblia”?

    Em hebraico, é usada a palavra סֵפֶר (“sefer”) para significar “livros”, rolos, escritos, inscrições. Em grego, usa-se o termo βιβλον (“Biblion”), cujo qual significa “livros”, “pergaminhos”.
     Por isso, a Bíblia é um “conjunto de textos”. Não é um produto de um autor individual! Convém ressaltar que mais do que alguém que redigiu (“escreveu”), há uma tradição oral da comunidade. Por isso, a Bíblia não é obra de um escritor fechado em seu escritório climatizado; mas é obra transmitida por uma comunidade. Uma pessoa vive na comunidade; logo, os textos bíblicos são, em primeiro lugar, uma tradição coletiva. 

 

 A Bíblia tem “autor”?

     Por que estamos tão interessados em saber quem escreveu a Bíblia? Isto é comum para nossa cultura ocidental que se acostumou a ver textos escritos. A sociedade israelita não era uma predominantemente escrita, mas sim uma cultura oral. Haviam escribas, na grande maioria, somente na Mesopotâmia. Estes eram apenas pessoas que transcreviam os relatos literários e não os “autores”, eram burocratas. No idioma hebraico clássico sequer possui uma palavra que signifique “autor”. O “escriba”, סֹפֵר (“sofer”), termo mais aproximado, era o transmissor da tradição e não o autor. As tradições e as histórias, na cultura judaica, eram  transmitidas oralmente de uma geração à outra. A autoridade era a comunidade e não um autor.
   “Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que levou à sua redação, ao investigarmos o sentido exato dos textos sagrados, devemos atender com diligência não menor ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e analogia da fé.” (DV, 12)
    Porém, o Helenismo (difusão da língua, da cultura e valores gregos) trouxe consigo a expressão autor. A ação de “dar autores” aos textos é algo posterior. Isso fica claro, por exemplo, no livro do Deuteronômio, que se apresenta como um relato em terceira pessoa e não como algo que Moisés escreveu: “Eis as palavras que Moisés dirigiu a todo Israel” (Dt 1,1).

 

Quando houve a transição do Oral para o Escrito?

    Primeiramente, é importante salientar que no mundo greco-romano houve resistência natural aos livros e à escrita. As pessoas consideravam a “voz viva” mais eficiente que os escritos. Paulo, por exemplo, aos Coríntios, dirá: “Vós sois uma carta do Cristo confiada ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos vossos corações”. (2 Cor 3,3) Nos primeiros séculos da Era cristã, os rabinos também diziam que a tradição oral era a última autoridade, acima da Torá escrita (“conjunto de texto bíblicos” do Antigo Testamento, menos os escritos em grego).

 

Quando a Bíblia foi redigida?

     A tradição oral é antiguíssima! Já a redação, em grande parte, do Antigo Testamento, aconteceu entre os séculos VIII e VI a.C. (“antes de Cristo”), ou seja, entre os dias dos profetas Isaías e Jeremias. A redação aconteceu com o movimento de “urbanização” de Jerusalém, com o crescimento da burocracia governamental e no desenvolvimento da economia global. Portanto, a “Bíblia Judaica” (formada por três conjuntos: Toráh – “ensino” –, Nebiim – Profetas – e Ketubim – escritos), chamada de Tanak, possui fragmentos datados no século X a.C. e a maior parte no final do século VIII a.C. e no início do século VI a.C. Os primeiros escritos cristãos foram as cartas. Assim, nos anos 50 do século I, Paulo elaborou os mais antigos documentos cristãos existentes: 1 Tessalonicenses, Gálatas, Filipenses, Filêmon, 1 e 2 Coríntios e Romanos. As demais cartas/epístolas foram surgindo aos poucos, em meados dos anos 60. No Novo Testamento, os Evangelhos têm o primeiro lugar por serem o principal testemunho da vida e doutrina do Verbo encarnado, Jesus Cristo. Os evangelhos são de origem apostólica: Os Apóstolos pregaram e, depois, eles e outros discípulos apostólicos transmitiram por escrito, sob inspiração do Espírito Santo, o testemunho e a vida de Jesus. Neste sentido, o Evangelho segundo Marcos, o mais antigo, foi redigido na década de 60 ou logo depois dos anos 70. Os evangelhos segundo Mateus e Lucas foram redigidos entre 10 e 20 anos depois de Marcos. Por fim, o evangelho segundo João foi composto entre os anos 90 e 100. 
     Nenhum dos Evangelhos menciona um nome de um autor. A atribuição dos nomes aconteceu no final do século II. O fato dos “livros” estarem numa ordem isto não significa que os primeiros sejam os mais antigos. Por exemplo, o Apocalipse é um gênero literário que representa a comunidade cristã após os anos 70. Enfim, as composições cristãs aconteceram, provavelmente, entre os anos 50 e 150.
 
Pe. Renan Dall'Agnol
Paróquia Sagrado Coração de Jesus
Material de Formação Catequética